A questão da habitação e a regulação dos pobres no Rio de Janeiro:
“Choque de ordem” ou “choque de cidadania”?
A luta dos trabalhadores pobres por moradia digna está chegando a um momento crucial. Este momento é crucial também para os setores dos governos Municipal, Estadual e Federal ligados à esquerda, em geral, e ao PT, em particular. Urge perguntar: a “esquerda de governo” tem políticas públicas para os trabalhadores pobres da metrópole ou pensa apenas nos interesses das grandes empresas?
Há dezenas de ocupações no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
Os ocupantes são conjuntos de famílias de trabalhadores informais (muitas de camelôs) que conseguem auferir uma renda trabalhando no Centro da cidade – onde colocam seus filhos para estudar – e não têm nenhuma proteção social.
Diante dessa situação inadmissível e, apesar de tudo o que se fala sobre formalização, proteção aos informais e recuperação da dimensão urbana do Centro da Cidade, as diferentes instâncias de governo (Município, Estado e União) se mostram completamente indigentes: não há nenhuma política pública que reconheça, em geral, o direito constitucional à moradia e, em particular, o direito à moradia dos trabalhadores pobres do Centro da cidade. Se existem alguns bons propósitos, como o projeto de recuperação de alguns prédios públicos para habitação, estes estão longe de acompanhar o ritmo das lutas e das ocupações.
O poder aparece diante dos pobres como um aparelho de proteção dos interesses da propriedade privada, inclusive quando ela é pública na realidade, como no caso de prédios abandonados às baratas por grandes administrações estatais. Pior, as decisões da Justiça só são acatadas e executadas pelos governos com lisura (e truculência!) quando são favoráveis aos proprietários. Quando, inversamente, são favoráveis aos movimentos dos pobres, elas são esvaziadas pela burocracia de sempre: enquanto a decisão da Justiça que obriga o Estado e a Prefeitura a pagar um aluguel social aos moradores despejados de uma ocupação precisa de 3 meses para ser acatada (e, ainda assim, apenas parcialmente) , a decisão de despejo dos moradores do prédio do INSS da Av. Mem de Sá nº 134 foi executada em apenas três dias (no dia 26 de junho de 2009).
Esse episódio recente – violento e sem nenhuma mediação por parte dos chamados “poderes públicos” – é extremamente emblemático! As 30 famílias que ocupavam o prédio despejado – dentre as quais havia 35 crianças (tendo uma nascido na rua há pouco mais de uma semana) – foram desabrigadas de outra ocupação por causa de um incêndio. Neste caso, a Justiça interditou o prédio, mas determinou também que o Município auxiliasse os sem-teto na mudança dos pertences. No entanto, a Prefeitura mandou um caminhão de lixo da COMLURB para fazer a mudança! Assim, os sem-teto se recusaram a usar o caminhão de lixo e só saíram quando foi enviado um caminhão fechado pertencente à Defesa Civil.
Restam dois fatos políticos gravíssimos:
- os pobres são tratados como lixo !
- não há política voltada para eles !
Resultado: os acampados da Av. Gomes Freire continuaram com seu movimento e mostraram sua capacidade de luta ocupando um prédio (abandonado) do INSS na Av. Mem de Sá.
A pauta política imposta pela grande mídia conservadora sobre o “choque de ordem” se traduz politicamente na própria falta de políticas!
Quais são as políticas da Secretaria de Assistência Social do Estado, da Secretaria Municipal de Habitação e do Ministério da Previdência ?
O caso é particularmente grave: o governo municipal nos mostra uma visão incrivelmente pobre da questão da cidade, da moradia e dos pobres! Os avanços anunciados em termos de regularização fundiária e urbanística nas favelas não podem ficar separados de uma articulação com uma política integrada da cidade que reconheça concretamente o direito à moradia dos trabalhadores pobres do Centro da Cidade. Tudo o que se oferece é o programa federal “Minha Casa, Minha Vida” ou então, o abrigo. Ora, naturalmente, as famílias de trabalhadores que hoje estão na rua não podem esperar a execução (demorada) do programa federal de habitação e o abrigo não é moradia: ele implica em um sistema de restrições infindáveis e o esvaziamento do caráter imediato da luta por moradia.
Escandalosamente, a Secretaria Municipal de Habitação não propõe nada e dá a entender que o movimento das ocupações não é bem vindo nem bem quisto; quase como se fosse um lobby em busca de alguma benesse ou privilégio.
O movimento não é lobby, mas a base da construção da democracia e da cidadania!
Os trabalhadores pobres do Centro do Rio de Janeiro precisam de proteção social: é preciso RESOLVER JÁ A QUESTÃO DA MORADIA E NEGOCIAR COM AS OCUPAÇÕES: dito isto, é preciso implementar imediatamente um programa de titulação jurídica, de assistência técnica gratuita e de adequação dos prédios para fins de moradia. É um escândalo que ainda não se tenha implementado um projeto de regularização da documentação da grande multidão de ocupantes (sem certidões e documentos!) que permitam seu cadastramento no programa Bolsa Família..
A informalidade não é mais a sobra residual de uma taxa de crescimento econômico insuficiente. Ao contrário, o próprio crescimento gera e multiplica a precariedade do emprego. A informalidade mistura assim as mazelas do subdesenvolvimento com aquelas da modernização e as novas formas de precariedade do trabalho, sobretudo em âmbito metropolitano. Não por acaso, entre os ocupantes e os manifestantes que participam do movimento dos sem-teto há estudantes universitários: não se trata de solidariedade ideológica, mas de uma nova composição do trabalho que nossos secretários e ministros poderiam começar a enxergar, se não quiserem abrir o caminho àquele declínio da esquerda cujas modalidades e resultados podemos facilmente observar em vários países europeus.
Diante disso, o “combate à informalidade” apresenta-se aberto a uma grande alternativa:
- por um lado, aquele pautado pela elite, faz do “choque de ordem” uma linha repressiva permanente, sem fim: a repressão aos pobres se torna uma política que preenche o vazio da própria ausência de política, quer dizer, de governos que não tem projeto nenhum que não seja aquele de ... governar!
- por outro, aquele pautado por uma política progressista de mobilização democrática que reconhece a dimensão produtiva dos direitos, a começar pela moradia! Oferecer aos trabalhadores pobres uma moradia digna, acessível e próxima do local de trabalho é um passo essencial na construção de uma rede de proteção social adequada a esse novo tipo de trabalho e na reconstrução da política democrática, do trabalho da democracia e dos direitos.
Como podem os responsáveis pelos cargos de governo que dependem da mobilização dos pobres ignorar os movimentos? Como pode o Ministro da Previdência ignorar os pedidos de socorro daqueles que não tem previdência nenhuma ?
É preciso perguntar se as diferentes instâncias de governo só pensam em entregar mais dinheiro para as grandes empresas através da multiplicação das renúncias fiscais ou se sabem – ao contrário – tirar a lição da re-eleição de Lula em 2006? Pois são as políticas sociais que pavimentam o caminho de um outro modelo de desenvolvimento e de sua base de legitimação social!
Precisamos, mais que nunca, de um choque de cidadania no Rio de Janeiro – a começar pelo reconhecimento das justas lutas dos trabalhadores informais sem-teto do Centro da cidade!
Ivana Bentes, professora UFRJ
Giuseppe Cocco, professor UFRJ
Rodrigo Guéron, professor UERJ
Tatiana Roque, professora UFRJ
Bárbara Szaniecki, pós-graduanda PUC-Rio
Gerardo Silva, professor UFRJ
Pedro Barbosa Mendes, pós-graduando UFRJ
Leonora Corsini, pesquisadora LABTeC-UFRJ
Carlos Augusto Peixoto – professor PUC-Rio
Márcia Aran, professor UERJ
André Barros, Advogado
Marta Peres, professora UFRJ
Raul Vinhas, professor Unicamp
Damian Krauss, psicanalista
Danton D’Ornellas Silva – Estudante IBMEC
Maria Elisa da Silva Pimentel – professora Unipli
Mariana Patrício Fernandes – pós-graduanda PUC-Rio
Pedro Morthé Kosovski
Ricardo Sapia Campos – sociólogo
Lúcia Ozório - Centro Universitário Celso Lisboa
Vanessa Santos do Canto – jurista
Simone Sobral Sampaio, Professora de Serviço Social/UFSC
Alex Patez Galvão – economista
Luiz Camillo Osorio – Professor PUC-Rio
Pepe Bertarelli – Arquiteto
Fernando Gonçalves – UERJ
Romano, Artista plástico
Cristina Laranja Ribas, artista e pesquisadora
Rafael Rezende – PUC-Rio
DCE - Diretório Central de Estudantes – PUC-Rio
Maria dos Camelôs – MUCA (Movimento Unido dos Camelôs)
Jorge Alberto - Estudante FACHA e Sec. Geral JPT RJ.
Felipe Cavalcanti – Médico
Wallace Hermann - radialista